Reflexões

Reflexões sobre a indicação de responsabilidade e os pontos de acesso

Pontos de acesso

Uma dúvida frequente das pessoas que estão aprendendo a catalogar é: se já registro o nome dos responsáveis na indicação de responsabilidade, por que preciso registrá-los também na forma de pontos de acesso?

Quando penso nessas questões penso em alguns pontos. Vamos a esses pontos então.

“Qual a função de uma indicação de responsabilidade?

Segundo o glossário do AACR2r (2004, p. D-7), uma indicação de responsabilidade é um “Indicação transcrita do item que está sendo descrito, referente às pessoas responsáveis por seu conteúdo intelectual ou artístico, às entidades das quais emana o conteúdo, ou às pessoas ou entidades responsáveis pela execução do conteúdo do item.”.

Segundo o RDA (2012, 2.4.2.1), “Uma indicação de responsabilidade relacionada ao título principal é um indicação associada ao título principal que traz a identificação e/ou a função de qualquer pessoa, família ou entidade coletiva responsável pela criação do conteúdo intelectual ou artístico do recurso ou que contribua para a realização de tal conteúdo”.

Com base nessas definições, podemos dizer que as funções de uma indicação de responsabilidade são essencialmente duas: (1) indicar as entidades (pessoas, entidades coletivas, famílias) que possuem alguma relação com o conteúdo do recurso e (2) indicar qual é esta relação.

“Por que não incluímos pontos de acesso para todos?”

Em um catálogo em fichas, cada ponto de acesso adicional (secundário) requer uma cópia da ficha principal ou matriz, assim, incluir pontos de acesso para todas as entidades associadas a um recurso é muito oneroso, pois requer recursos humanos e materiais.

“Ok, reproduzir fichas era algo dispendioso, mas em um catálogo digital não precisamos reproduzir os registros, basta adicionarmos mais e mais campos 7xx (700, 710, 711, etc.).”

Infelizmente não é tão simples assim. Tanto em um catálogo em fichas quanto em um digital, adicionar mais e mais pontos de acessos pode parecer simples somente se você e sua instituição não se importam com a consistência do catálogo. Se vocês entendem a necessidade da consistência e se empenham para garantir que ela seja alcançada, sabem que cada ponto de acesso autorizado requer um registro de autoridade ou, ao menos, uma consulta a algumas fontes de informação, o que demanda, também, recursos humanos e materiais.

Como resultado da preocupação com os custos relacionados à criação de fichas secundárias e de registros de autoridade há limitação dos pontos de acesso imposta pelos códigos de catalogação. Um exemplo dessa limitação é a regra 21.30K1 do AACR2r, que estabelece condições para que seja adicionado ao registro bibliográfico um ponto de acesso para o tradutor do recurso informacional.

“Os catálogos digitais atuais podem permitir que qualquer dado de um registro bibliográfico seja um ‘ponto de acesso’.”

No contexto dos catálogos em fichas, devido às limitações espaciais impostas pelo formato da ficha catalográfica, os pontos de acesso (antes chamados de cabeçalhos) eram realmente os únicos meios de se ter acesso a uma descrição (considerando aqui também como pontos de acesso os números de chamada, no caso dos catálogos topográficos, e os números de classificação, no caso dos catálogos sistemáticos).

Hoje, em um catálogo digital, há a possibilidade de chegarmos a uma descrição por meio de qualquer um de seus atributos, não somente por meio dos pontos de acesso estabelecidos pelas regras de catalogação e pela catalogação de assunto. Temos tecnologia suficiente para que eu possa acessar a descrição de um livro por meio de um atributo que indique que ele é uma autobiografia (valor “a” na posição 34 do campo 008 do Formato MARC 21 para Dados Bibliográficos), por meio de seu local de publicação ou de seu resumo.

Os pontos de acesso de assunto incluem dados não encontrados na descrição, assim não podemos nos poupar de sua inclusão em um registro bibliográfico. Já os pontos de acesso de responsabilidade são, em sua maior parte, constituídos por dados presentes na descrição do recurso, mais especificamente no elemento indicação de responsabilidade.

“Por que não abandonamos esses pontos de acesso de responsabilidade? Eles são dispendiosos e a função que desempenham no acesso ao recurso pode ser desempenhada pela indicação de responsabilidade.”

Será que a função dos pontos de acesso é apenas possibilitar o acesso?

Não. Uma de suas funções é possibilitar que o usuário do catálogo faça uma e somente uma busca para acessar todas as descrições associadas à entidade por ele desejada, independentemente do nome ou da forma do nome pelo qual ele conhece a entidade.

Isso ocorre porque o controle dos pontos de acesso reúne em um registro de autoridade todos os nomes e formas do nome utilizados pela entidade, elegendo um ponto de acesso autorizado que será utilizado nos registros bibliográficos sempre que necessário mencionar a entidade em questão. O sistema, analógico ou digital, é construído para guiar o usuário ao ponto de acesso autorizado e, então, aos registros bibliográficos que contêm tal ponto de acesso.

Há, no entanto, outra função dos pontos de acesso controlados que, embora nem sempre percebida claramente, é de extrema importância aos catálogos, principalmente se falarmos em FRBR e catálogos mais “interessantes”.

Antes mascarados pelo termo “cabeçalho” e agora por “ponto de acesso“, esses elementos relacionam de forma implícita ou explícita as descrições dos recursos informacionais cobertos pelo catálogo.

Esses relacionamentos permitem a disposição (reunião, arranjo, etc.) das descrições dos recursos informacionais que compartilham uma mesma característica: obras com um mesmo tema ou criadas por uma mesma pessoa, as expressões de um obra, as manifestações (edições, formatos, etc.) de uma expressão, etc.

Essa disposição das descrições, idealizada já no século XIX na obra de Charles A. Cutter*, é a base para agregarmos valor aos nossos registros e oferecermos ao usuário um catálogo em que ele possa, de modo rápido e fácil, escolher entre aqueles recursos que satisfazem suas necessidades informacionais e aqueles que não.

Convenhamos que a maior parte dos catálogos digitais – principalmente os brasileiros – simulam catálogos em fichas. O principal diferencial de uma parte desses catálogos é o uso de links nos pontos de acesso, o que facilita a navegação do usuário até a disposição das descrições que compartilham um mesmo ponto de acesso.

Deixar de registrar os pontos de acesso só porque os nomes dos responsáveis pelo recurso já estão registrados na indicação de responsabilidade seria privar esses catálogos da pouca vantagem que eles tiram das tecnologias atualmente disponíveis.

“Já que não podemos nos desfazer dos pontos de acesso, o que faremos? Continuamos a registrar duas vezes um mesmo dado?”

Não. O problema não está nos pontos de acesso controlados, mas sim na indicação de responsabilidade. A solução que penso ser a mais adequada é deixar de registrar a indicação de responsabilidade.

“Já que podemos acessar uma descrição por qualquer um de seus atributos, se abolirmos a indicação de responsabilidade, como o usuário terá acesso à descrição por meio de dados que constam somente em tal elemento, por exemplo, o nome de um tradutor para o qual não foi adicionado um ponto de acesso?”

Simples: inclua também pontos de acesso para os tradutores e outros responsáveis, se a política de sua instituição prover essa orientação, claro.

“Se preciso incluir pontos de acesso para todos e, pensando na consistência do catálogo, preciso criar registros de autoridade para cada ponto de acesso autorizado, quanto vai custar uma catalogação?”

Pode não ser necessário criar um registro de autoridade para cada entidade, pois, assim como acontece com os registros bibliográficos, outra instituição pode já ter criado o registro de que você precisa. Temos tecnologias para possibilitar o compartilhamento de dados bibliográficos e de autoridade em escala global, o que falta são pessoas pensando nisso e dispostas a fazer algo.

“E a segunda função da indicação de responsabilidade? Em um ponto de acesso, como indicarei a relação de cada entidade com o conteúdo do recurso?

Provavelmente poucos conhecem e/ou utilizam os subcampos $e “Termo relacionador” e $4 “Código relacionador” dos campos 100, 110, 700, 710, etc. do Formato MARC 21 para Dados Bibliográficos. Esses subcampos destinam-se ao registro dos termos e códigos que indicam a relação entre a entidade representada pelo ponto de acesso e o recurso descrito no registro bibliográfico. Assim, o uso desses subcampos permite que os pontos de acesso cumpram a segunda função da indicação de responsabilidade.

O uso de termos para indicar o relacionamento entre as entidades (obras, expressões, manifestações, itens, pessoas, entidades coletivas, etc.) é algo previsto no RDA, onde esses termos são chamados de designadores de relacionamento (relationship designators). E, diferente do AACR2r que traz poucos designadores (comp., coord., il., trad.), o RDA traz listas e mais listas de designadores.

Resumindo: os pontos de acesso e os designadores de relacionamento podem suprimir a necessidade de registrarmos as indicações de responsabilidade. Assim, para concluir esta reflexão, penso que, do mesmo modo com que “entrada principal” e “entrada secundária” perderam seu sentido no ambiente digital, mais cedo ou mais tarde a indicação de responsabilidade também perderá seu sentido e, principalmente, sua importância em tal ambiente.

* Para saber mais sobre o objetivo de dispor (collocating objective) e sobre outros objetivos dos catálogos definidos por Cutter, recomendo a leitura do trabalho “A importância do controle de autoridade: uma abordagem baseada nos objetivos e nas funções dos catálogos“, apresentado I Encontro Nacional de Catalogadores e no III Encontro de Estudos e Pesquisa em Catalogação.

Fabrício Assumpção

Bibliotecário na BU/UFSC. Bacharel em Biblioteconomia, mestre e doutor em Ciência da Informação.

2 thoughts on “Reflexões sobre a indicação de responsabilidade e os pontos de acesso

  • Dalhe Fabrício, mais uma vez um ótimo texto para refletirmos…

    Li duas vezes este post, por que ao longo da leitura diversos questionamentos fui levantando, algumas críticas tbm (não a você, mas a classe de como um todo).

    Primeiramente, caímos na catalogação robótica que temos hoje e provavelmente muitos catalogadores ao lerem seu post pouco entenderam os seus questionamentos, afinal, se está no código, siga!

    Quanto ao texto em si, vou separar por tópicos os assuntos que me chamaram atenção:
    – No que refere-se a entradas ilimitadas de pontos de acesso, o RDA já prevê abertura, até na escolha da quantidade de pontos de acesso a serem dados a uma obra. O que vc acha que irá acontecer? Eu acho (de forma pessimista) que a maioria das bibliotecas usará está abertura para não alterar os seus catálogos e definir a famosa “regra dos 3″…

    – Contudo, por experiência prática, a abertura de muitos pontos de acesso realmente exigirá das entidades catalogadoras muito tempo no controle das autoridades do campo 100 e 110 e nesse ponto que acabo discordando de você na questão de importação dos registros de autoridade, pois com a RDA ganhamos novos campos no MARC Autoridades (já os usamos na UCS) e realmente estes campos exigem do catalogador uma pesquisa mais profunda do que a cópia dos catálogos nos davam. Além da questão do idioma, pois terei que traduzir para o português autoridades importadas da LC e/ou VIAF.

    – Julgo ser quase insano você ter uma autoridade registrada em seu catálogo e não utilizá-la na descrição de uma obra, tendo que seguir a regra dos 3, isso sim acaba por estragar a função da autoridade que é vincular as obras relacionadas com determinada autoridade. Por mais que você indique no 245 $c, é fundamental que haja o ponto de acesso, para recuperarão dos dados a partir da autoridade.

    – Quanto aos subcampos 4 e E, por indicação de uma nova bibliotecária na UCS, passamos a utilizá-los a cerca de 5 meses e realmente auxiliam muito na descrição. No caso do Pergamum, são fundamentais para a correção das referências bibliográficas geradas pelo sistema.

    – Uma dica para você pesquisar: dê uma lida na regra da AACR2 que aborda a entrada principal a entidades coletivas (bem no início da parte II) e depois verifique alguns catálogos (inclusive o da UCS). Verás que nós ainda temos muitas dúvidas (erro mesmo, pq a regra não é difícil) sobre quando uma obra recebe entrada principal por entidade ou não.

    Desculpe o longo comentário e por fim te deixo uma questão:

    Se no Brasil, uma gigantesca parcela das bibliotecas não utilizam título uniforme para as obras traduzidas (o que daria mais trabalho no cont. de autoridades), por que utilizam o campo 240 para o título original?

    Parabéns pelo texto,
    Abs.

    Resposta
    • Oi Marcelo!
      Que bom que gostou do texto!

      Também acho que temos uma catalogação muito robótica. Infelizmente, presenciei uma situação que deixou bem evidente essa “robótica”: um grupo estava discutindo sobre pontos de acesso e os conceitos de principal e secundário, aí uma pessoa disse “Mas se temos um código temos que seguir, se vamos seguir temos que seguir!” (ou algo mais ou menos assim). Não tenho nada contra seguir as instruções corretamente, muito pelo contrário, sou a favor. O que acontece é que as pessoas têm que saber da necessidade de parar para pensar sobre as instruções que estão seguindo e nesse ambiente onde estávamos era justamente um ambiente para pensarmos sobre catalogação!

      Sobre a quantidade de pontos de acesso para cada obra, penso da mesma forma que você: infelizmente as bibliotecas não mudarão muito suas práticas.
      Sobre a importação de registros de autoridade você tem razão. Vai levar um tempo (consequentemente custos) até dispormos de registros de autoridade criados com o RDA disponíveis para a importação e exportação. Ainda mais tempo se pensarmos no cenário nacional.

      Que bom que vocês estão utilizando os subcampos 4 e E! Utilizar esses subcampos é pensar no futuro dos dados catalográficos. Eles são a “chave” para possibilitar/facilitar a realização de muitas coisas em médio e em longo prazo: FRBRização dos catálogos, conversão dos registros para outros formatos, integração dos catálogos com outros bancos de dados, etc. Infelizmente não conheço muitas bibliotecas brasileiras que utilizam esses subcampos. Para preencher estes subcampos vocês elaboraram uma lista de termos ou utilizaram/traduziram alguma já existente?

      Obrigado pela dica sobre o ponto de acesso principal para entidade coletiva! Assim que conseguir um tempo tentarei fazer um post sobre isso.

      Sobre a utilização do campo 240 para registrar o título original: essa é uma boa pergunta! Não conheço bibliotecas que têm essa prática, em geral as vejo registrando o título original no campo 500 e o título uniforme em lugar nenhum.

      Pensei em três motivos pelos quais as bibliotecas utilizam o 240 para o título original: (1) elas não conhecem/entendem a função do campo 240; (2) elas pensam que o título original é o título uniforme sem qualquer mudança ou acréscimo; e (3) elas devem pensar “Não uso o título uniforme, mas, ao menos, registro o título original” ou algo assim. De qualquer forma, penso que essa situação decorre da falta de conhecimento sobre os títulos uniformes. Não sei se sua pergunta era essa ou se respondi certo rsrs (se eu descobrir alguma coisa sobre isso eu post aqui).

      Não se preocupe com o comentário longo rsrs Eu, com estes posts que demandam uma eternidade para a leitura, que devo pedir desculpas.

      Desculpe a demora em responder. A semana foi muito corrida por aqui.
      Abraços,

      Resposta

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